Tudo o que você precisa saber sobre Pesquisa Clínica com Seres Humanos no Brasil

Tudo o que você precisa saber sobre Pesquisa Clínica com Seres Humanos no Brasil

Brasil aprova novo marco legal para a pesquisa clínica com seres humanos. A Lei Federal estabelece direitos e deveres para pesquisadores, patrocinadores e participantes de pesquisas clínicas com seres humanos

Em 29 de maio de 2024, foi publicada a Lei Federal 14.874/2024, que estabeleceu os princípios, diretrizes e regras para a condução de pesquisas com seres humanos por instituições públicas ou privadas no Brasil (“Lei de Pesquisa Clínica”).

A Lei de Pesquisa Clínica Federal estabeleceu regras que buscam harmonizar o ambiente regulatório brasileiro às normas e boas práticas internacionais em pesquisa clínica e torna-lo um ambiente mais seguro juridicamente e mais atraente para projeto de pesquisa.

Além de medicamentos, a Lei de Pesquisa Clínica também é aplicável a pesquisas realizadas com produtos e dispositivos médicos e aos produtos de terapias avançadas experimentais, no que aplicável.

A sanção e é um marco histórico, e amplia o potencial do Brasil para se destacar no cenário internacional de pesquisas clínicas, buscando afastar lacunas e inseguranças jurídicas mediante a regulamentação nacional do tema.

Até então, o tema era regulamentado por meio de resoluções da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“Anvisa”) e do Conselho Nacional de Saúde (“CNS”).

Vigência: a Lei de Pesquisa Clínica entrou em vigor em 27 de agosto de 2024.

Vetos do Presidente da República:

Como é sabido, após a aprovação de um projeto de lei pelo Congresso Nacional, o texto é enviado para a sanção presencial ou para possíveis, sendo que 2 (dois dispositivos foram vetados pelo presidente da República.

O primeiro veto recaiu sobre o dispositivo legal que permitia a suspensão da obrigatoriedade de fornecimento pós-estudo do medicamento experimental aos participantes das pesquisas após 5 (cinco) anos contados da disponibilidade comercial do medicamento experimental no Brasil. 

As razões do veto indicam que o estabelecimento de prazo máximo para o fornecimento do medicamento pós-estudo seria contrário ao interesse público, além de ferir os direitos dos participantes da pesquisa clínica e de comprometer eventual desenvolvimento de pesquisas éticas baseadas nos princípios da dignidade, da beneficência e da justiça. Além disso, o veto pontua que não havia prazo máximo para a continuidade do fornecimento gratuito do medicamento experimental pós-estudo para os participantes da pesquisa, e que o fornecimento deve ser continuado independentemente de sua disponibilidade comercial pela iniciativa privada.

Também foi vetado o dispositivo que trazia a exigência de comunicação ao Ministério Público sobre participação de indígenas nas pesquisas, por ferir o princípio da isonomia.

Os vetos necessitam ser apreciados pelo Congresso Nacional, devendo ser rejeitados ou confirmados. O Congresso teria o prazo de 30 dias para deliberar sobre vetos presidenciais em sessão conjunta dos senadores e deputados federais, sendo necessária a maioria absoluta do Congresso Nacional para a rejeição dos vetos (arts. 57, §3º, IV e 66, da Constituição Federal). No entanto, este prazo já foi ultrapassado, e o Congresso Nacional segue sem apreciar os vetos do Presidente da República.

Caso os vetos sejam rejeitados pelo Congresso Nacional, os dispositivos da lei inicialmente vetados serão encaminhados para a promulgação pelo Presidente da República em até 48 horas (art. 66, §7º, da Constituição Federal).

Nota publicada pelo Ministério da Saúde:

Em nota publicada em 27 de agosto, o Ministério da Saúde informou que:

  • A publicação da Lei de Pesquisa Clínica contempla a segurança jurídica, a previsibilidade de prazos na análise ética dos projetos de pesquisa e promove transparência nos processos.

  • A regulamentação da Lei de Pesquisa Clínica ocorrerá por ato do Poder Executivo, estabelecendo as regras de transição, que orientarão o trabalho do sistema, que integra aproximadamente 1,2 milhão de usuários, 35 mil instituições e 900 Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs) em todo o país, e que não deve sofrer interrupções.

  • O decreto, bem como documentos posteriores, tratará da organização, coordenação e funcionamento do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com seres humanos, bem como abordará a peculiaridade dos temas específicos previstos na Lei de Pesquisa Clínica.

  • Até que sejam publicadas normas específicas, permanecerão vigentes as normas existentes, respeitando o disposto na Lei de Pesquisa Clínica, garantindo que as pesquisas com seres humanos não sofram descontinuidade ou atrasos desnecessários na análise ética.

  • O processo de transição não modifica os procedimentos de submissão de protocolos de pesquisa na Plataforma Brasil, que permanece como a base nacional e unificada para registros de pesquisas envolvendo seres humanos. 

  • A Instância Nacional de Ética em Pesquisa será responsável pela regulação, fiscalização e controle ético das pesquisas, com o objetivo de proteger a integridade e a dignidade dos participantes. Os CEPs continuarão funcionando regularmente, assegurando a continuidade e eficiência de suas atividades, com a responsabilidade de proteger os participantes de pesquisa, além de promover a ciência, a tecnologia e a inovação no país.

Pesquisa clínica: conceito legal estabelecido

A Lei de Pesquisa Clínica estabeleceu o conceito de pesquisa clínica como o conjunto de procedimentos científicos desenvolvidos de forma sistemática com seres humanos com vistas a:

I. avaliar a ação, a segurança e a eficácia de medicamentos, de produtos, de técnicas, de procedimentos, de dispositivos médicos ou de cuidados à saúde, para fins terapêuticos, preventivos ou de diagnóstico;

II. verificar a distribuição de fatores de risco, de doenças ou de agravos na população;

III. avaliar os efeitos de fatores ou de estados sobre a saúde.

Objetivos da Lei de Pesquisa Clínica:

A Lei de Pesquisa Clínica tem como objetivos:

  • Conferir segurança jurídica a todos os agentes envolvidos na condução de pesquisa clínica;

  • Acelerar a aprovação de pesquisas clínicas no Brasil;

  • Ampliar o potencial do Brasil para se destacar no cenário internacional de pesquisas clínicas, colocando-o entre os 10 (dez) primeiros países no ranking global de pesquisa clínica;

  • Beneficiar pessoas portadoras de doenças graves, como o câncer e doenças raras.

Vale destacar que o estudo conduzido pela Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (“Interfarma”), IQVIA e Aliança Pesquisa Clínica Brasil, estima que, ao ascender à 10ª posição no ranking geral de pesquisa clínica, o Brasil poderá atrair um investimento direto estimado em R$ 3 bilhões por ano, com impactos econômicos mais expressivos, na ordem de R$ 5 bilhões por ano¹.

Instituição do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com seres humanos:

A ser regulamentado pelo Poder Executivo, o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos divide-se em:

I. Instância Nacional de ética em pesquisa, que tem como responsabilidade, dentre outras, editar normas regulamentadoras sobre ética em pesquisa e fiscalizar os Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs);

II. Instância de Análise Ética em Pesquisa, representada pelos CEPs, que tem como responsabilidade, dentre outras, (a) assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa, especialmente dos participantes em situação de vulnerabilidade; (b) considerar a qualificação do pesquisador para a pesquisa proposta, de acordo com seu currículo acadêmico e profissional; (c) conduzir a análise da pesquisa a ele submetida e o monitoramento de sua execução; e (d) assegurar que estejam previstos os meios adequados para a obtenção do consentimento do participante da pesquisa ou de seu representante legal.

Toda pesquisa com seres humanos estará sujeita à análise ética prévia, a ser realizada pelos CEPs, a qual não poderá ultrapassar o prazo de 30 dias úteis da data de aceitação da integralidade dos documentos da pesquisa, e essa aceitação, ou sua negativa, deverá ser feita pelo CEP em até 10 dias úteis a partir da data de submissão.

Pesquisas de interesse estratégico para o Sistema Único de Saúde (“SUS”) e que sejam relevantes para o atendimento de situações de emergência pública de saúde terão prioridade e contarão com procedimentos especiais de análise, de modo que o prazo para análise não poderá ultrapassar os 15 dias úteis da data do recebimento dos documentos da pesquisa.

Exigências éticas e científicas previstas no marco legal:

A Lei de Pesquisa Clínica estabeleceu as seguintes exigências técnicas e científicas a fim de trazer segurança jurídica aos participantes de pesquisa clínica:

  • Respeito aos direitos, à dignidade, à segurança e ao bem-estar do participante da pesquisa, que deverá prevalecer sobre os interesses da ciência e da sociedade;

  • Embasamento científico em avaliação favorável da relação risco-benefício para o participante da pesquisa e para a sociedade;

  • Condução de acordo com protocolo aprovado pelos CEPs;

  • Garantia de competência e de qualificação técnica e acadêmica dos profissionais envolvidos na realização da pesquisa;

  • Garantia de participação voluntária, mediante consentimento livre e esclarecido do participante da pesquisa;

  • Respeito à privacidade do participante da pesquisa e às regras de confidencialidade de seus dados, garantida a preservação do sigilo sobre sua identidade;

  • Provimento dos cuidados assistenciais necessários, em casos que envolvam intervenção;

  • Adoção de procedimentos que assegurem a qualidade dos aspectos técnicos envolvidos e a validade científica da pesquisa; e

  • Condução da pesquisa em compatibilidade com as boas práticas clínicas.

Proteção legal do participante de pesquisa:

A Lei de Pesquisa Clínica garante proteção aos sujeitos da pesquisa, cuja participação está condicionada à autorização expressa do participante ou de seu representante legal, mediante a assinatura de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

É vedada a remuneração do participante ou a concessão de qualquer tipo de vantagem por sua participação em pesquisa. Contudo, a Lei de Pesquisa Clínica permite o pagamento para a participação de indivíduos saudáveis em ensaios clínicos de fase I ou de bioequivalência, desde que o participante: (i) integre cadastro nacional de voluntários em estudos de bioequivalência e de fase I (a ser regulamentado); (ii) não integre, simultaneamente, mais de uma pesquisa. 

Não configuram remuneração ou vantagem para o participante da pesquisa: (i) o ressarcimento de despesas com transporte, alimentação ou o provimento material prévio; (ii) outros tipos de ressarcimento necessários, conforme o projeto de pesquisa.

Além disso, o patrocinador deve garantir ao sujeito de pesquisa indenização por eventuais danos sofridos em decorrência da sua colaboração na pesquisa, com o recebimento de assistência à saúde necessária relacionada a esses danos.

Por fim, a pesquisa será conduzida de forma a garantir o anonimato e a privacidade do participante, bem como o sigilo das informações.

Responsabilidade do Patrocinador:

A Lei de Pesquisa Clínica definiu patrocinador como a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, que apoia pesquisa mediante ação de financiamento, infraestrutura, recursos humanos ou de suporte institucional.

As principais responsabilidades do patrocinado são:

  • implementar e manter a garantia de qualidade e dos sistemas de controle de qualidade, com base nos POPs, a fim de garantir que a pesquisa seja conduzida e os dados sejam gerados, documentados e relatados com observância ao protocolo, às boas práticas clínicas e às exigências do regulamento;

  • estabelecer o contrato entre as partes envolvidas na pesquisa;

  • controlar a qualidade de cada estágio de tratamento dos dados, com vistas a garantir sua confiabilidade e seu correto processamento;

  • a manter a qualidade e a integralidade dos dados da pesquisa, ainda que tenham sido transferidas algumas ou todas as funções para terceiros;

  • selecionar os pesquisadores e as instituições executoras da pesquisa, considerada a qualificação necessária para a condução e para a supervisão da pesquisa;

  • garantir os recursos adequados para a condução da pesquisa, incluído o custeio de todas as despesas relacionadas a procedimentos, a exames e a ações para a resolução de eventos adversos;

  • verificar se o participante da pesquisa tenha autorizado o acesso direto a seus dados e a suas informações para fins de monitoramento, de auditoria, de revisão pelas entidades éticas competentes e de inspeção de agências reguladoras;

  • notificar prontamente ao pesquisador, à instituição executora, às entidades de análise ética competentes e à autoridade sanitária sobre descobertas que possam afetar adversamente a segurança do participante da pesquisa, comprometer a condução da pesquisa ou afetar a aprovação concedida pelo CEP;

  • notificar prontamente à autoridade sanitária de todos os eventos adversos graves ou inesperados cuja causalidade seja possível, provável ou definida em relação ao produto sob investigação;

  • monitorar a pesquisa;

  • comunicar aos pesquisadores envolvidos, à instituição executora e à autoridade sanitária acerca das razões da suspensão ou do término prematuro da pesquisa, quando for o caso;

O patrocinador, responsável final pela pesquisa, poderá delegar a execução de determinadas funções às Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (ORPCs), as quais assumirão responsabilidade compartilhada em relação ao objeto da delegação.

Critérios para fornecimento pós-estudo:

A Lei de Pesquisa Clínica prevê que o fornecimento gratuito do medicamento experimental no âmbito do programa de fornecimento pós-estudo poderá ser interrompido mediante submissão de justificativa ao CEP, apenas nas seguintes situações:

  • Decisão do participante da pesquisa ou seu representante legal;

  • Cura da doença ou introdução de alternativa terapêutica satisfatória;

  • Ausência de benefício do uso continuado do medicamento experimental, considerados a relação risco benefício fora do contexto do ensaio clínico ou o aparecimento de novas evidências de riscos relativos ao perfil de segurança do medicamento experimental;

  • Ocorrência de reação adversa que inviabilize a continuidade do medicamento experimental;

  • Impossibilidade de obtenção ou de fabricação do medicamento experimental por questões técnicas ou de segurança – desde que o patrocinador forneça alternativa terapêutica equivalente ou superior existente no mercado; ou

  • Fornecimento do medicamento no SUS.

Como comentado acima, ainda está pendente a avaliação do Congresso Nacional de uma importante hipótese de interrupção de fornecimento pós estudo que foi vetada pelo Presidente da República que seria a interrupção após decorridos 5 anos da disponibilidade comercial do produto que foi objeto da pesquisa clínica.

Prazo da Anvisa para analisar as petições primárias de ensaios clínicos:

Com o objetivo de acelerar o processo de disponibilização de novos produtos ao mercado, a Lei de Pesquisa Clínica estabeleceu prazo máximo para aprovação de ensaios clínicos com seres humanos pela Anvisa.

A análise sanitária relacionada às petições primárias de ensaios clínicos com seres humanos, para fins de registro sanitário do produto sob investigação, não poderá superar o prazo de 90 dias úteis. Se a Anvisa não se manifestar neste prazo, após regular recebimento da petição primária do ensaio clínico, o desenvolvimento clínico poderá ser iniciado, desde que contenha as aprovações éticas pertinentes.

Principais pontos a serem regulamentados:

Apesar da publicação do marco legal de pesquisa clínica, há temas que serão objeto de regulamentações, tais como:

  • Regras sobre publicidade, transparência e do monitoramento da pesquisa;

  • Regras sobre a fabricação, uso, dispensação, importação, exportação, armazenagem e descarte de produtos destinados para pesquisa clínica;

  • Diretrizes sobre POPs e boas práticas;

  • Regras para biobancos (coleção organizada, sem fins comerciais, de material biológico humano e de informações associadas, coletados e armazenados para fins de pesquisa);

  • Critérios e procedimentos para o funcionamento, suspensão ou extinção de CEPs;

  • Regras sobre processo de análise ética de pesquisa perante os CEPs;

  • Regras para o protocolo de pesquisa clínica;

  • Cláusulas obrigatórias para contratos de pesquisa clínica;

  • Criação de procedimento de fast track para análise ética de pesquisa de interesse estratégico para o SUS e relevante para o atendimento à emergência pública de saúde;

  • Regras para criação de Cadastro Nacional de Voluntários em Estudos de Bioequivalência e de Fase I;

  • Regras para criação de programa de fornecimento pós-estudo ou continuidade do tratamento experimental.

A prática de Life Sciences & Healthcare do Souto Correa pode apoiar seu time em projetos de pesquisa clínica. Encaminhe seus questionamentos ao e-mail: lifesciences@soutocorrea.com.br e/ou anderson.ribeiro@soutocorrea.com.br.

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[1] https://www.interfarma.org.br/wp-content/uploads/2023/08/Pesquisa-clinica-2022_atualizado.pdf

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