33 anos do Código de Defesa do Consumidor: avanços e transformações
Por Roberta Feiten, Flávia do Canto e Joana Rosin
No último dia 11 de setembro, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) completou 33 anos desde sua publicação. Em mais de três décadas, foi possível constatar muitos avanços relevantes na implementação dos direitos dos consumidores.
Embora muitos ainda acreditem que o CDC pretende apenas proteger os clientes, o Código também prevê a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, a compatibilização da proteção dos consumidores com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico dos fornecedores, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica. O que se busca, assim, é a proteção das relações de consumo mediante o estabelecimento de direitos e deveres de ambos os lados, sem que se deixe de considerar o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor.
Nesse sentido, na aplicação e interpretação do CDC, as autoridades, em especial as do Poder Judiciário, têm estado atentas ao equilíbrio nas relações de consumo e ao respeito à boa-fé, evitando que o Código seja desvirtuado de seu propósito e impedindo que se torne um meio fácil de enriquecimento sem causa pelos consumidores. O controle das condenações por dano moral é um claro exemplo dessa limitação, seja quanto a pedidos de indenização por meros transtornos, seja quanto a pleitos indenizatórios que envolvem valores desproporcionais e irrazoáveis [1].
É possível citar também os casos em que o consumidor é cobrado em quantia indevida, e só tem direito à repetição em dobro do valor pago em excesso caso tenha havido má-fé por parte do fornecedor [2]. Da mesma forma, apesar da responsabilidade objetiva prevista no CDC, este dispõe de forma expressa excludentes de responsabilidade do fornecedor. A vinculação do fornecedor à oferta realizada, igualmente não se dá de forma geral e irrestrita, já que a jurisprudência reconhece diversas situações de erro grosseiro perceptível ao consumidor, em que o fornecedor não fica obrigado ao seu cumprimento [3].
A inversão do ônus da prova representa importante direito consolidado ao longo dos anos, mas igualmente não ocorre de forma automática e imediata. O próprio dispositivo prevê a necessidade de que sejam atendidos, cumulativamente, os pressupostos legais da verossimilhança das alegações e da hipossuficiência. Assim, ainda que a inversão do ônus da prova tenha sido um claro avanço em termos de facilitação da defesa do consumidor em juízo, há limites à sua aplicação [4].
A lei trouxe também os critérios da responsabilidade objetiva e da responsabilidade solidária, de modo que o consumidor pode acionar qualquer um dos fornecedores que integram a cadeia de fornecimento conforme o caso, sem a necessidade de comprovação de culpa. Nada obstante, está assegurado o direito do fornecedor ao reparo do produto ou à reexecução dos serviços, bem como à invocação de uma das excludentes de responsabilidade.
Com relação à aplicabilidade do CDC, o STJ tem adotado a teoria finalista mitigada, segundo a qual o sistema protetivo do CDC pode ser aplicado no caso de quem, mesmo adquirindo produtos ou serviços para o desenvolvimento de sua atividade empresarial, ostenta vulnerabilidade diante do fornecedor [5].
Uma das recentes inovações diz respeito à instituição do site consumidor.gov.br como plataforma oficial voltada à autocomposição nas controvérsias em relações de consumo. Desde que lançada, já foram mais de 1.300 empresas e quase cinco milhões de usuários cadastrados, com mais de sete milhões de reclamações respondidas e finalizadas [6], o que contribui para a redução do número de demandas simples, repetitivas e massificadas ajuizadas no Poder Judiciário. Em formato digital, a plataforma permite a interlocução direta entre consumidores e fornecedores para a resolução de disputas de consumo, além de contar com infográficos, indicadores e boletins anuais, que podem ser úteis a consumidores, fornecedores e autoridades.
A autonomia dos Procons municipais e estaduais, prevista no CDC, também permitiu o amplo acesso da população à resolução de conflitos sem a necessidade de judicializar diversas questões, conforme o caso.
Não se pode esquecer do controle de práticas abusivas, como a vedação à venda casada [7] e a vedação à exigência de vantagem manifestamente excessiva [8], assim como o controle de cláusulas abusivas.
A defesa coletiva dos consumidores prevista no CDC igualmente se consolidou como relevante instrumento jurídico na busca de reparação por direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Quanto ao instituto do recall, previsto no CDC e complementado por Portarias e Notas Técnicas do Ministério da Justiça e Segurança Pública, desempenha papel significativo na preservação da vida, saúde, integridade e segurança do consumidor, que são direitos básicos assegurados pelo Código.
Grandes transformações em 33 anos desde a publicação do CDC são igualmente perceptíveis no âmbito da publicidade. O artigo 36, por exemplo, que dispõe acerca da necessidade de que a publicidade seja veiculada de tal forma que o consumidor possa, de forma fácil e imediata, identificá-la como publicidade, indica sobretudo o caráter de legislação avançada e vanguardista do CDC. Da mesma forma, a expressa vedação do CDC à publicidade enganosa — em que há indução do consumidor em erro, seja de forma ativa, através da divulgação de informações falsas, seja de forma omissa, em que dados essenciais do produto ou serviço são ocultados [9] —, bem como a vedação à publicidade abusiva, aí incluída a discriminatória, igualmente representam um passo importante conquistado a partir do CDC na ampliação da proteção e defesa dos consumidores, inclusive para a modulação de comportamentos e hábitos de consumo.
É inegável, ainda, que, desde que foi publicado, o Código de Defesa do Consumidor passou por transformações. Pode-se citar, nesse contexto, a recente lei nº 14.181/2021, que acrescentou ao Código a disciplina do crédito ao consumidor e a prevenção e tratamento do superendividamento.
Outras legislações esparsas relacionadas aos direitos dos consumidores podem ser referidas, como por exemplo: 1) o Decreto do SAC, de nº 6.523/2008, recentemente revogado pelo Decreto nº 11.034/2022, visando a incrementar os serviços regulados pelo poder público federal em prol do atendimento ao consumidor; 2) a legislação sobre a concessão de crédito nas compras parceladas (Lei nº 10.962/2004 e Decreto nº 5.903/2006); 3) o Decreto do comércio eletrônico (Decreto nº 7.962 de 2013); 4) a LGPD (Lei nº 13.709/2018), que trata especificamente da proteção de dados pessoais, aí incluídos os dados dos consumidores, cujo artigo 45 reforça expressamente a legitimação das autoridades de proteção e defesa do consumidor no atendimento de demandas relacionadas ao tema; e 5) a Lei nº 13.146/2015, que incluiu os portadores de deficiência dentre os protegidos pelo Código.
Sem prejuízo das diversas alterações ou regulamentações legislativas já realizadas, os princípios e os objetivos que norteiam o Código permanecem os mesmos e devem ser celebrados, sendo necessário ressaltar que a legislação consumerista é de ordem pública e de interesse social, com origem constitucional, já que a defesa do consumidor é um direito fundamental, previsto no artigo 5º, XXXII da Constituição.
[1] AgInt no REsp 1476632 (2014/0165559-1), RAUL ARAÚJO, STJ – QUARTA TURMA, DJE DATA: 08/09/2017
[2] AgInt no AREsp 1701311 (2020/0111369-3 de 22/03/2021), LUIS FELIPE SALOMÃO, STJ – QUARTA TURMA, DJE DATA:19/05/2017
[3] TJMG, Apelação Cível 1.0000.20.588929-8/001, relator(a): desembargador (a) Cláudia Maia, 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/02/2021, publicação da súmula em 23/02/2021
[4] TJSP; Agravo de Instrumento 2131330-23.2022.8.26.0000; relator (a): Rosangela Telles; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Tietê – 1ª Vara; Data do Julgamento: 26/07/2022; Data de Registro: 27/07/2022
[5] REsp nº 2.020.811/SP, relatora ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 29/11/2022, DJe de 1/12/2022
[6] https://www.consumidor.gov.br/pages/indicador/infografico/abrir
[7] REsp nº 1.331.948/SP, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 14/6/2016, DJe de 5/9/2016
[8] TJSP; Apelação Cível 1041029-30.2021.8.26.0114; relator (a): Danilo Panizza; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Público; Foro de Campinas — 1ª Vara da Fazenda Pública; Data do Julgamento: 11/10/2022; Data de Registro: 31/10/2022
[9] TJSP; Apelação Cível 1018077-16.2021.8.26.0451; relator (a): Coelho Mendes; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Piracicaba — 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 31/08/2023; Data de Registro: 31/08/2023
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