Lei de Ação Civil Pública e a necessária contenção de associações de gaveta

Lei de Ação Civil Pública e a necessária contenção de associações de gaveta

Há quase 40 anos, o Brasil deu um importante passo para a tutela coletiva de direitos: em 1985, foi promulgada a Lei nº 7.347, denominada “Lei de Ação Civil Pública”. O objetivo era permitir a prestação jurisdicional a uma coletividade que tenha um direito em comum afetado, sem que seja necessário, para isso, excessiva judicialização individualizada. Isso é claramente constatado pela análise do rol de temas listados como dignos de proteção coletiva: meio ambiente; consumidor; bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; enfim, qualquer interesse difuso ou coletivo.

Hoje, a ação civil pública e os processos coletivos em geral (por exemplo, ação civil coletiva, ação popular, mandado de segurança coletivo) conquistaram relevante espaço no cenário judicial. Segundo o Cadastro Nacional de Ações Coletivas do Conselho Nacional de Justiça, em 5/1/2023 havia 256.205 processos coletivos em tramitação no Brasil; destes, 201.412 ainda estão ativos, sendo que 201.153 estão em primeira instância [1].

Que a tutela coletiva de direitos é extremamente importante, não há dúvidas; contudo, essa proteção não pode ser banalizada. Precisamente por sua crescente relevância na atualidade, também é necessário analisar o tema de modo crítico e constante, para que não haja uma sobrecarga do Poder Judiciário, especialmente se tratando de uma ação que não gera sucumbência à associação-autora. Essa análise crítica está, inclusive, na pauta do Congresso Nacional, diante da existência de dois Projetos de Lei na Câmara dos Deputados que buscam disciplinar a “Nova Lei de Ação Civil Pública” — o que, espera-se, seja estudado e discutido na nova legislatura que se inicia.

Ainda que os tópicos a serem debatidos contra a banalização da utilização dos processos coletivos que supostamente visam à proteção de direitos coletivos possa gerar interessantes discussões, um deles merece especial destaque: os critérios para legitimação de associações civis para a propositura de ações coletivas.

Atualmente, a Lei de Ação Civil Pública (em conjunto com o Código de Defesa do Consumidor) estabelece dois requisitos formais para a legitimação de associações civis: 1) a sua constituição há mais de um ano (critério temporal) e 2) a inclusão, dentre suas finalidades institucionais, da proteção de um ou mais dos interesses referidos na lei (critério da pertinência temática).

Isso gera, no entanto, uma mera representatividade formal e abre espaço para abusos com a utilização de associações que apenas em sua aparência possuem o viés coletivo. Alguns exemplos podem ser dados nesse sentido.

Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou o AgRg no REsp 901.936/RJ, destacando que as associações necessitam “ter finalidades institucionais compatíveis com a defesa do interesse transindividual que pretendem tutelar em juízo”, mas que essas finalidades não podem ser dispostas em seu estatuto de forma desmesuradamente genérica, “sob pena de admitirmos a criação de uma associação civil para a defesa de qualquer interesse, o que desnaturaria a representatividade adequada do grupo lesado”. Esse entendimento já ecoa em julgados mais recentes do STJ, reforçando o entendimento de que o critério da pertinência temática pode e deve ser filtrado com lentes mais acuradas.

Em 2019, o Ministério Público do Estado do Maranhão ajuizou Ação Civil Pública requerendo a dissolução de quatro associações, criadas com o intuito de burlar o cadastro de inadimplentes de órgãos de proteção de créditos [2]. Apesar de ainda não haver decisão sobre o tema, será interessante acompanhar a análise e desdobramento perante o Poder Judiciário.

No mesmo ano, o STJ novamente enfrentou o tema no EREsp 1554821/RS. Nesse julgado, restou expresso que deve ser analisado, “caso a caso, a realidade de Ações Coletivas propostas por ‘associações de fachada’, para que tal patologia não venha a se confundir com o escopo virtuoso da Lei 7.347/1985 e do Código de Defesa do Consumidor” — patologia essa imbuída de verdadeira intenção arrecadatória de “indenizações milionárias”, sem a preocupação “com eventual risco de sucumbência”.

Por fim, em 2022, ainda em primeira instância, na Justiça Estadual de São Paulo, foi proferida sentença em ação ajuizada pelo Instituto Brasileiro de Defesa da Proteção de Dados Pessoais, Compliance e Segurança da Informação (Sigilo), em que se alegava suposto compartilhamento de dados dos consumidores da ré, sem o consentimento. Nessa oportunidade, entendeu-se pela ilegitimidade daquela associação, uma vez que 1) não foi apresentado rol de associações ou reclamação de algum sociado sobre a conduta da ré; 2) o seu estatuto era extremamente genérico; 3) era nítido que a ação foi ajuizada fonte arrecadatória por meio da pretensão de indenização milionária. Ainda pende de análise a apelação interposta pelo Instituto, mas o Ministério Público de São Paulo já apresentou parecer opinando pela manutenção da decisão de ilegitimidade da associação.

Nota-se que a jurisprudência está atenta para coibir e remediar abusos ocorridos caso a caso, mas maior segurança jurídica poderia ser atingida com a reforma da lei. Critérios podem e devem ser buscados para se garantir, cada vez mais, a adequada representatividade das associações. Nesse sentido, por exemplo, os projetos de lei antes referido estabelecem alguns critérios: 1) prévia autorização estatutária ou assemblear para ajuizamento de ações; 2) apresentação de histórico na defesa judicial e extrajudicial de direitos coletivos; 3) número de associados; 4) capacidade financeira (inclusive para arcar com despesas processuais); e 5) exemplos de documentos da associação que sejam capazes de demonstrar o efetivo compromisso com as finalidades previstas em estatuto.

Não apenas isso: pode-se buscar inspiração também na legislação europeia. A necessidade de atualização do tema, para garantir uma adequada representatividade de associações, foi objeto da reforma levada a cabo pela Diretiva 2020/1828, aprovada em 25 de novembro de 2020 e que teve como mote o fato de que, em razão da globalização e digitalização, cada vez mais consumidores estão sujeitos a mesmas condutas consideradas ilegais. Nesse âmbito, para que uma entidade seja “qualificada” a proteger os interesses dos consumidores, além dos critérios temporais e da pertinência temática, estabeleceu-se a necessidade de a entidade: 1) não ter fins lucrativos; 2) não estar insolvente ou ter sido declarada insolvente; 3) ser independente e não ser influenciada por pessoas que não sejam consumidores, em especial por profissionais que tenham um interesse económico em intentar uma ação coletiva, nomeadamente no caso de financiamento por terceiros, para impedir influência e conflitos de interesses entre si própria, os seus financiadores e os interesses dos consumidores; 4) divulgação, especialmente, em website, sobre os critérios definidos na Diretiva.

O estudo europeu reforça a ideia de que os instrumentos processuais não podem ser banalizados com a intenção arrecadatória, devendo cumprir estritamente com critérios, os quais, diferentemente do Brasil, vinculam a condução da associação de forma ativa quanto à proteção dos consumidores.

Associações que desvirtuam a lógica do sistema devem ter sua atuação inibida. Isso garante não apenas segurança no mercado (já que pretensões aventureiras, com a intenção meramente arrecadatória e desvinculada do interesse alegadamente protegido, serão rechaçadas pelo Poder Judiciário), mas também fortalece a proteção desses interesses e aumenta a confiança do público nas instituições que atuam junto a esses setores.


[1] https://paineisanalytics.cnj.jus.br/single/?appid=1d54bc4d-81c7-45ae-b110-7794758c17b2&sheet=c95a13f7-32bd-4976-abfd-24d3234ea5f6&lang=pt-BR&opt=ctxmenu,currsel

[2] https://www.mpma.mp.br/sao-luis-mpma-pede-dissolucao-de-associacoes-usadas-para-burlar-cadastro-de-inadimplentes/

Referências

Artigo publicado pelo Conjur.
Sou assinante
Sou assinante