Fair share como foco na Consulta Pública da Comissão Europeia sobre o Futuro da Conectividade

Conforme já havíamos adiantado ainda em março deste ano (veja aqui), quando tratamos dos destaques da Mobile World Congress (MWC) 2023, um grande pano de fundo do evento foi a disponibilização de consulta pública elaborada pela Comissão Europeia sobre “o futuro do setor das comunicações eletrônicas e das suas infraestruturas”.

Tendo sido encerrada em 19 maio, a consulta pública, segundo a Comissão Europeia, tinha como objetivo “recolher opiniões sobre a evolução do panorama tecnológico e de mercado e como pode afetar o setor das comunicações eletrônicas”. Também, abordou os tipos de infraestrutura e a quantidade de investimentos que a Europa precisa para liderar a transformação digital nos próximos anos. Segundo a Comissão, a consulta “faz parte de um diálogo aberto com todas as partes interessadas sobre a necessidade potencial de todos os atores que se beneficiam da transformação digital de contribuir de forma justa para os investimentos necessários. Esta é uma questão complexa que requer uma compreensão completa dos fatos e números subjacentes”.

E, justamente nesse contexto de todos os players que se beneficiam da transformação digital, há acirrado debate sobre a assimetria regulatória entre as prestadoras de telecomunicações e as grandes empresas de tecnologia, que representam a maior parte da demanda pela infraestrutura de telecomunicações. A grande questão envolve justamente a repartição das fatias dos custos da infraestrutura digital disponibilizada e usufruída, a qual passa a ter sua sustentabilidade questionada. Essa discussão vem sendo tratada como fair share.

A Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) também já trata do tema, por meio da Tomada de Subsídios nº 13/2023 (veja aqui) que foi prorrogada até 31/07/2023.

O fair share, portanto, apresenta-se como uma proposta de mitigação dos efeitos da assimetria existente, proporcionando um ecossistema digital mais equilibrado e sustentável, uma vez que prevê as grandes plataformas digitais e empresas de tecnologia arcando com parcela dos custos para a manutenção e atualização da infraestrutura responsável por permitir o fluxo de dados consumidos para o provimento do próprio serviço e conteúdo ofertados pelas plataformas. Ou seja, em suma, para além das empresas de telecom (prestadoras de serviços de telecomunicações), também aqueles prestadores de SVA (serviço de valor adicionado) passariam a dividir os gastos para a manutenção da infraestrutura digital.

Para chegarmos à proposta do fair share, deve-se ter em mente que, segundo as prestadoras de serviços de telecom, a maior parte do tráfego de dados de internet é provocada pelo fluxo de dados ao longo do consumo de conteúdos e serviços ofertados pelas plataformas digitais, principalmente, quando diante de recursos de streaming. Contudo, o maior consumo de dados da rede não é acompanhado de uma participação maior no pagamento dos custos da própria infraestrutura que permite a prestação desses serviços digitais. Nesse cenário, a assimetria existente é intensificada a partir do momento em que é verificado que as plataformas digitais passam a auferir lucros elevadíssimos com a oferta de seus produtos, demandando cada vez mais dessa infraestrutura digital.

As prestadoras de serviços de telecomunicações, então, endossam o argumento da necessidade de implantação do fair share, pois, segundo elas, o exponencial incremento dos serviços prestados em ambiente digital (intensificados a partir da pandemia do Covid-19) exigem das prestadoras elevado investimento para a expansão dessas redes com o objetivo de atender à tamanha demanda pelo fluxo de dados. Alegam, portanto, que essa responsabilidade deve ser repartida, uma vez que o acesso a redes sociais, jogos online e streamings de vídeo correspondem a mais de 70% do fluxo observado. As Big Techs (Meta, Alphabet, Apple, Amazon, Netflix e Microsoft), por exemplo, seriam elas sozinhas responsáveis por mais de 50% do tráfego de dados nas redes.

Por outro lado, as empresas de tecnologia se posicionam, indicando que não seriam exatamente elas responsáveis pelo elevado tráfego, mas sim seus próprios usuários finais, demonstrando a relação intrínseca e recíproca entre as empresas de telecom e as empresas de tecnologias, as quais seriam responsáveis por contribuir para o aumento da demanda por serviços de telecomunicações. Ainda, destacam que já contribuem, investindo na infraestrutura de internet, além de demonstrarem preocupação com eventuais mitigações do princípio da neutralidade da rede, pelo qual os provedores de internet se comprometem a não alterar o fluxo de dados para a priorização de determinado serviço.

Não podemos deixar de mencionar que, no âmbito europeu, o acirramento dessa discussão pode apresentar impactos significativos nas economias europeias, a partir da possibilidade de empresas de tecnologia passarem a prover seus conteúdos por meio de provedores de internet instalados fora da União Europeia, fugindo, assim, de eventual pagamento sobre o uso da rede.

Em evento realizado no final de maio na Espanha, com a organização de El Español-Invertia e Telefónica, foi discutida a necessidade de se adequar a regulação europeia ao atual ambiente tecnológico. Assim como previsto, mais uma vez, representantes das prestadoras de telecom se posicionaram pela participação dos grandes geradores de tráfego no financiamento da atualização e manutenção das infraestruturas de redes. Por outro lado, houve quem entendesse que o fair share seria um duplo pagamento, uma vez que é o usuário quem gera o tráfego na rede e ele já paga pelo serviço de telecomunicações mensalmente. Em tréplica, representantes de telecom afirmaram que o custo pelo aumento de tráfego nas redes foi todo incorporado pelas próprias operadoras, mantendo os valores sobre os pacotes de dados ofertados aos clientes. Enquanto o tráfego de internet teria crescido 36% ao ano nos últimos 10 anos, a receita das prestadoras de telecom teria caído 0,7%.

Ao longo do evento, foi inclusive aventada a possibilidade de celebração de acordos entre as prestadoras de telecom e as plataformas digitais, para negociarem entre si um melhor arranjo como solução.

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Gabriella Salvio – gabriella.salvio@soutocorrea.com.br

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