Plataformas digitais: ônus do usuário de provar suas alegações em ações judiciais

Plataformas digitais: ônus do usuário de provar suas alegações em ações judiciais

Com o avanço da tecnologia e com o surgimento da pandemia do coronavírus, as plataformas digitais que disponibilizam ambientes online para a comercialização de produtos e serviços ganharam ainda mais espaço. Com o aumento das transações, é esperado que aumentem, também, eventuais desacordos comerciais entre os usuários que negociam por meio dessas plataformas digitais.

Quando o caso não é resolvido entre os usuários, por vezes, somente a plataforma é demandada, no Judiciário, por um desses usuários. No âmbito de ações judiciais movidas por usuários contra as plataformas digitais, relevante questão diz respeito ao ônus da prova.

O ônus da prova diz respeito à posição jurídica atribuída às partes para que demonstrem as afirmações de fato pertinentes, relevantes e controvertidas para a decisão da controvérsia. Tradicionalmente, o ônus da prova tem duas funções (subjetiva e objetiva).

Na perspectiva subjetiva, o ônus da prova representa uma regra de instrução dirigida às partes, indicando qual das partes deve apresentar provas sobre uma determinada questão de fato e os riscos que correm as partes se uma determinada alegação não for provada.

Do ponto de vista objetivo, o ônus da prova indica qual das partes perde diante de uma situação de não esclarecimento dos fatos. Constitui, assim, uma regra de julgamento, atribuída ao juiz: ao final da instrução, em caso de dúvida a respeito das alegações de fato controvertidas no processo, ele deve decidir contrariamente à parte que tinha a incumbência de prová-las, mas não o fez.

Há casos em que, sem maior acuro, considera-se que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável à relação entre a plataforma e os usuários e se determina, de forma automática, a inversão do ônus da prova. No mais das vezes, essa “inversão” ocorre ao arrepio das exigências fixadas pela lei e pela jurisprudência.

Primeiro, a decisão que determina essa alteração deve ser devidamente fundamentada (artigo 373, §1º, CPC). Não basta, assim, que sejam invocados motivos genéricos de que “há relação de consumo” ou “estão presentes os pressupostos legais”, sob pena de vício de fundamentação (artigo 489, §1º, II e III, CPC).

A caracterização da verossimilhança das alegações da parte e da hipossuficiência para a produção da prova devem ser devidamente justificadas à luz do caso concreto. Além disso, a decisão que determina a modificação do ônus da prova deve especificar em relação a quais enunciados fáticos que está ocorrendo a modificação do encargo.

Nunca haverá “inversão” total, pois a modificação do ônus da prova só pode ocorrer relativamente às alegações de fato em que se verificar extrema dificuldade da parte para a produção da prova ao mesmo tempo em que a parte contrária estiver em condições facilitadas para produzir essa mesma prova.

Segundo, a modificação do ônus da prova deve ocorrer na fase de saneamento e organização do processo (artigo 357, III, CPC). O STJ entende que o ônus da prova é uma regra de instrução (e não de julgamento), de modo que a decisão judicial que determina a modificação do ônus da prova não pode se dar somente em sentença e deve ocorrer na etapa instrutória.

Isso para que a parte onerada tenha ciência inequívoca do ônus que lhe incumbe e possa requerer/produzir provas no momento oportuno. Frise-se que é cabível impugnação imediata, por meio de agravo de instrumento, à decisão que verse sobre a distribuição do ônus da prova (artigo 1.015, XI, do CPC).

Terceiro, em qualquer das hipóteses de modificação do ônus da prova, deve ser observada a limitação prevista no artigo 373, §2º, do CPC: a dinamização não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte originalmente não onerada seja impossível ou excessivamente difícil.

Ou seja, se o ônus da prova relativo a uma determinada alegação de fato é igualmente impossível ou extremamente difícil para o autor e para o réu, não é possível a modificação do ônus probatório. Do contrário, haveria atribuição de prova diabólica para a parte que, originalmente, não tinha o encargo de provar. E isso sem qualquer resultado prático relevante para o aumento do material probatório do processo.

É justamente a impossibilidade de atribuir um encargo impossível ou extremamente difícil para uma das partes (prova diabólica) que deve ser atentada nos litígios que envolvem as plataformas digitais.

Lembre-se que as atividades normalmente prestadas pelas plataformas digitais se restringem à disponibilização de um ambiente online por meio do qual os usuários (um usuário-anunciante e um usuário-interessado) se aproximam e concluem transações diretamente entre si.

Dentre os serviços prestados pelas plataformas, geralmente, não está incluída a verificação prévia do conteúdo de todos os anúncios, tampouco a checagem da efetiva qualidade/segurança de todos os produtos/serviços anunciados pelos usuários e da efetiva disponibilização desses produtos/serviços nas condições descritas nos anúncios.

Há limitações materiais à atuação das plataformas digitais que as impedem de ter controle de informações sobre os produtos ou serviços anunciados pelos usuários. Consequentemente, atribuir-lhes qualquer encargo probatório, por exemplo, sobre as condições do produto ou serviço contratado entre os usuários, importaria atribuir à plataforma o ônus de produzir uma prova diabólica.

A situação fica clara com alguns exemplos: 1) o usuário que adquire uma camisa em um marketplace de venda direta entre os usuários, mas alega que o item foi entregue com problemas na costura; 2) o usuário que adquire uma refeição por aplicativo de delivery, mas reclama de mal-estar após o consumo. A inversão do ônus da prova não tem cabimento nesses cenários; 3) o usuário que contrata uma locação por temporada em plataforma que veicula anúncios de imóveis de terceiros para essa finalidade, mas alega que o imóvel não estava adequadamente limpo quando chegou ao local.

Veja-se que, nos exemplos citados acima, está-se diante de plataformas online, cuja funcionalidade é disponibilizar um ambiente para que usuários anunciem e vendam seus produtos, serviços ou concluam transações entre si. Porém, a plataforma não tem nenhuma ingerência sobre a qualidade ou sobre as características do produto em si, porque não há uma análise física desse produto.

A plataforma não controla a eventual prestação de serviço contratado em seu âmbito. Assim, eventual ônus probatório acerca, por exemplo, da inexistência de vício/defeito de um produto comercializado via marketplace não pode recair sobre a plataforma, porque a produção da prova, repita-se, torna-se impossível para a Plataforma. Pensar de modo diferente poderia inviabilizar o modelo de negócio das plataformas online, atribuindo-lhes encargos incompatíveis com as suas atividades.

De fato, provavelmente, o usuário estará em melhores condições de produzir provas de suas alegações. No exemplo da contratação da locação, a produção da prova quanto à limpeza do imóvel seria viável ao usuário-locatário que esteve no local e poderia ter registrado as suas condições. Com as facilidades proporcionadas por smartphones (câmera e vídeo), a produção dessa prova seria extremamente fácil ao locatório. Assim, não se justifica a “inversão” do ônus da prova na hipótese analisada.

Tem-se, então, que as ações ajuizadas exclusivamente contra as plataformas online devem, salvo exceções, ser pautadas pela regra geral de distribuição do ônus da prova (artigo 373, I e II do CPC), a fim de que se evite incumbência de prova impossível às plataformas digitais, visto que elas não têm controle ou ingerência sobre o objeto das transações e contratos celebrados entre os usuários.

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Referências/comentários:
Na doutrina, essas concepções sobre o ônus da prova podem ser encontradas, dentre outros, em: ROSENBERG, Leo. La Carga de la Prueba (1900). Trad. Ernesto Krotoschin. Buenos Aires: EJEA, 1956; MICHELI, Gian Antonio. L’onere della prova. Padova: CEDAM, 1942; BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e Ônus da Prova (1979). Temas de Direito Processual: segunda série (1980). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988; CARPES, Artur Thompsen. Ônus da prova no novo CPC: do estático ao dinâmico [livro eletrônico]. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017; PAULA RAMOS, Vitor de. Ônus da prova no processo civil: do ônus ao dever de provar [livro eletrônico] (2015). 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018; FERRER BELTRÁN, Jordi. La Carga Dinámica de la Prueba. Entre la Confusión y lo Innecesario. In: NIEVA FENOLL, Jordi; FERRER BELTRÁN, Jordi; GIANNINI, Leandro J. Contra la Carga de la Prueba. Madrid: Marcial Pons, 2019; MITIDIERO, Daniel. O ônus da prova e seus inimigos. Revista de Processo. vol. 306/2020, ago./2020.

Ainda que não se possa concordar com conclusões gerais sobre a aplicabilidade do CDC às relações entre as plataformas e seus usuários, o tema não é objeto deste artigo.

STJ, REsp nº 1.286.273/SP, 4ª Turma, Ministro Relator: Marco Buzzi, DJe: 22/06/2021.

STJ, REsp nº 1729110/CE, 3ª Turma, Ministra Relatora: Nancy Andrighi, DJE: 02/04/2019.

STJ; REsp nº 1814330/SP; 3ª Turma; Ministra Nancy Andrighi; DJE: 28/09/2021

Os exemplos são analisados sem nenhuma consideração sobre o mérito dos pedidos citados. Independentemente da distribuição dos ônus probatórios ou da efetiva produção de provas, não se cogita da hipótese de responsabilização das plataformas digitais diante das situações
descritas.

TJPE, Processo nº 0038148-38.2021.8.17.8201, 9º Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo da Capital, julgado em 29/11/2021.

Referências

Artigo publicado pelo ConJur.
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